Liberdade de expressão e cultura jurídica democrática


Na manhã desta quarta-feira (20/08), a Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas promoveu um encontro para discussão do relatório Liberdade de Expressão e Internet, produzido pela Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Além da presença dos professores Oscar Vilhena Vieira e Mônica Guise, estavam presentes Catalina Botero Marino (relatora especial para a liberdade de expressão da Organização dos Estados Americanos), Guilherme Canela (cientista político e assessor de comunicação da Unesco) e Luiz Fernando Moncau (gestor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio).

Os debates tiveram início com uma pequena intervenção introdutória de Oscar Vieira. Ele destacou que a liberdade de expressão ainda é uma pauta pouco discutida com profundidade no Brasil. No entanto, reconheceu que, progressivamente, os países latino-americanos estão se concentrando na proteção deste direito humano. 

No Brasil, além da proteção da liberdade de expressão em decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal -- como a ADPF 187 (Marcha da Maconha), que reconheceu "a liberdade de expressão como um dos mais preciosos privilégios dos cidadãos em uma república fundada em bases democráticas" com fundamento na Convenção Americana de Direitos Humanos --, há inovações legislativas como o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que colocam a liberdade de expressão como fundamento normativo do uso da rede de computadores. Tais leis estão alinhadas com a moldura jurídica do sistema inter-americano de proteção de direitos humanos.

Catalina Botero e o relatório Liberdade de Expressão e Internet
Após a fala de Oscar, teve início a apresentação do relatório Liberdade de Expressão e Internet, por Catalina Botero. Primeiramente, Catalina ressaltou o papel da Organização dos Estados Americanos na promoção e proteção dos direitos humanos em nosso continente. Ela frisou que o relatório não é somente "doutrina", mas sim "direito". Segundo Botero, os princípios orientadores da liberdade de expressão -- acesso universal, pluralismo, não discriminação e privacidade -- são soft law, pois foram aprovados em dezembro de 2013 pela OEA.

Em seguida, Catalina discutiu pontualmente os quatro princípios orientadores da liberdade de expressão, além de destacar a importância central da neutralidade de rede (princípio pelo qual o tratamento dos dados e o tráfego de internet não devem ser objeto de qualquer tipo de discriminação em função de fatores como dispositivos, conteúdo, autor, origem, destino do material, serviço ou aplicação). Catalina elogiou a experiência política de Chile e Brasil -- que buscaram garantir a vigência desse princípio por meio de uma legislação adequada -- e criticou o impasse surgido nos EUA, no qual a Federal Communications Comission tem se mostrado suscetível a flexibilizar a regra de neutralidade de rede.

Catalina também exibiu um vídeo bastante didático, produzido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sobre tais princípios. Ele explica o significado do acesso universal, do pluralismo (potencialmente prejudicado por tendências de fechamento da rede e filter bubbles), da não discriminação na web e das regras básicas de privacidade e garantia contra o vigilantismo em massa.



Para Catalina, as mudanças ocorridas com o Marco Civil da Internet estão de acordo com os princípios norteadores do relatório. A limitação da responsabilidade civil dos intermediários é um dos pontos fundamentais, segundo a relatora. A responsabilização do autor de eventuais ofensas na internet -- e não da plataforma que garante que determinado conteúdo seja produzido (o serviço Blogger, por exemplo) -- é a melhor forma de evitar mecanismos de censura prévia. 

A experiência recente tem mostrado que os Estados podem facilmente responsabilizar os provedores de aplicações e conteúdos. Em um cenário de responsabilização objetiva, tais empresas irão criar mecanismos de censura prévia para evitar ações judiciais e danos. Nesse sentido, o relatório defende a ideia de isenção de responsabilidade daquele que oferece uma plataforma para produção de conteúdo:

O exercício do direito à liberdade de expressão na internet depende em grande medida de um amplo leque de atores, principalmente privados, que atuam como intermediários na prestação de serviços como o acesso e interconexão; transmissão, processamento e reencaminhamento de tráfego; a hospedagem de materiais publicados por terceiros e o acesso aos mesmos, a referência a conteúdos ou a busca de materiais na rede; a realização de transações financeiras; e a conexão entre usuários por meio de plataformas de redes sociais, entre outros. Existe um grande número de intermediários e diferentes modos de classificá-los; entre os mais relevantes, estão os provedores de serviços de internet (PSI), os provedores de hospedagem de sítios de internet, as plataformas de redes sociais e os mecanismos de busca. (...) a aplicação de critérios de responsabilidade objetiva é excepcional no direito contemporâneo e só se justifica em casos estritamente definidos, nos quais se pode presumir que a pessoa declarada responsável descumpriu um dever legal e teve ou pôde ter o controle sobre o fator de risco que ocasionou o dano. No caso dos intermediários de internet, é conceptual e praticamente impossível, sem desvirtuar toda a arquitetura da rede, sustentar que os intermediários tenham o dever legal de revisar todos os conteúdos que circulam por meio deles ou presumir razoavelmente que, em todos os casos, está sob seu controle evitar o dano potencial que um terceiro possa gerar utilizando os seus serviços. A esse respeito, está claro que os intermediários não devem estar sujeitos a obrigações de supervisão dos conteúdos gerados pelos usuários a fim de deter ou filtrar expressões ilícitas (OEA, 2013, p. 42-43).

Um segundo ponto destacado por Catalina é o problema da legitimidade das restrições à liberdade de expressão. Para a OEA, é necessário que toda restrição seja fundamentada e estabelecida por meio de leis em sentido formal e material, e que tais leis sejam claras e precisas. São ilegítimas restrições substantivas definidas em "disposições administrativas ou regulações amplas ou ambíguas que não geram certeza sobre o âmbito do direito protegido". O relatório, nesse sentido, propõe a adoção de métricas de proporcionalidade para definição das possibilidades legítimas de restrição:

Ao avaliar a proporcionalidade de uma restrição à liberdade de expressão, deve-se ponderar o impacto que tal restrição poderia ter na capacidade da internet de garantir e promover a liberdade de expressão em relação aos benefícios que a restrição implicaria para a proteção de outros interesses. Os requisitos essenciais que qualquer restrição ao direito à liberdade de expressão deve cumprir estão contidos nos artigos 13, 8 e 25 da Convenção Americana. Conforme foi afirmado, quando esses requisitos são aplicados a medidas que possam comprometer a internet, é necessário avaliá-los por uma perspectiva sistêmica digital. Esses requisitos podem ser resumidos a: (1) previsão legal; (2) cumprimento de uma finalidade imperativa; (3) necessidade, idoneidade e proporcionalidade da medida em relação à finalidade buscada; (4) garantias judiciais; e (5) cumprimento do devido processo, incluindo as notificações ao usuário (OEA, 2013, p. 27).

Para Catalina, essa visão sistêmica não está sendo aplicada em decisões judiciais, especialmente aquelas que buscam resolver conflitos ou lesões de "direito à honra" -- o que é muito comum em casos nos quais figuras públicas ou políticas são criticadas ou denunciadas por cidadãos comuns.

Provocações de Canela e Moncau
Após a apresentação do relatório, Guilherme Canela destacou que é preciso ponderação para analisar o discurso dos direitos humanos no Brasil. Para ele, liberdade de expressão não é o único direito humano em jogo no país. É preciso pensar em outros também (direito à saúde, direito à educação, etc). Para Canela, há casos em que a restrição da expressão é legítima. A questão é saber se a magistratura brasileira está preparada para definir as condições legítimas de restrição.

Na visão de Canela, o momento de definição de princípios para uso da internet já foi superado no Brasil. O próximo passo é a definição de políticas públicas de educação para uso da internet. Tais políticas precisam incluir uma visão democrática da rede, sustentada nos pilares do direito à formação crítica, direito à educação, liberdade de expressão e responsabilidade pela produção de conteúdos. Nesse sentido, o desafio é muito maior com relação às crianças e adolescentes. As escolas não estão discutindo cultura democrática e uso de internet. Não há formação adequada dos professores e não há um debate de formação sobre cultura cívica, responsabilidade e ética.

Luiz Fernando Moncau ressaltou a questão da ausência de políticas públicas de educação e criticou a persistência da cultura punitiva do direito brasileiro. Moncau retomou o caso das lan-houses no Rio de Janeiro: para evitar que crianças escapassem das salas de aula, o Legislativo optou por proibir todas as lan-houses instaladas em um raio de 1 quilômetro das escolas no Rio. O resultado foi a proibição de quase todas as lan-houses do Rio de Janeiro, impedindo a disseminação de cultura, o aumento da capacidade cognitiva via jogos e o acesso à internet por populações pobres, que necessitam da internet para questões básicas.

Esse exemplo mostra bem como que o Legislativo brasileiro lida com questões complexas. Ao invés de uma regulação mais sofisticada e políticas de educação para formação cidadã, o Estado opta pela proibição e punição, ignorando as consequências indesejáveis dessa racionalidade punitiva aplicada à sociedade. Esse é um traço da cultura jurídica brasileira, ainda incapaz de aprofundar a experiência democrática e estimular a corresponsabilidade dos cidadãos.

Outro ponto levantado por Moncau foi a necessidade de utilização do direito para definição de accountability e controle social do "Estado de vigilância". Considerando a regra de retenção de dados de conexão e dados de registros de aplicativos, a regulamentação do Marco Civil da Internet poderia criar uma regra que obrigasse o Estado a divulgar, trimestralmente ou semestralmente, um relatório explicando quais foram as autoridades administrativas que requisitaram tais dados e para quais motivos eles foram utilizados. Essa seria uma forma de ter um monitoramento ativo da obtenção de dados pessoais pelo Estado e compreensão da real necessidade dessa regra -- ainda mais, considerando-se que o Tribunal de Justiça da União Europeia invalidou há três meses a diretiva de retenção de dados pessoais de 2006.

Desafios para a construção de uma cultura jurídica democrática
Do debate realizado e a leitura do relatório Liberdade de Expressão e Internet ficam três lições importantes. A primeira é que a construção de uma cultura jurídica democrática não se faz com leis e princípios, mas sim com ações e disseminação de valores. Não é simples superar uma cultura jurídica punitiva, que por muito tempo ignorou as liberdades cívicas. De fato, não é fácil a tarefa de proteção da liberdade de expressão em um país com traços de cultura autoritária como o Brasil.

A segunda lição é que o momento atual é de criação de políticas de educação digital, especialmente para as novas gerações. O Brasil não pode perder o momento correto de utilizar os princípios definidos na Lei 12.965/2014 para criar políticas públicas educativas, voltadas à conscientização dos mais jovens sobre os princípios norteadores do uso da internet e as liberdades civis básicas de cada cidadão, esteja ele online ou offline.

A terceira lição é que a academia não pode ficar dormente e silenciada. Os juízes irão se deparar cada vez mais com casos difíceis que revelam a colisão de princípios ditos fundamentais (como por exemplo, liberdade de expressão v. proteção à honra e imagem). Ao decidir tais casos, os juízes podem utilizar como fundamentação não somente decisões anteriores, mas também os critérios definidos pela doutrina para decisão. As faculdades podem auxiliar na construção de uma cultura jurídica democrática, produzindo uma doutrina fundada no valor da liberdade de expressão.

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